sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

SINOPSE


Chegamos a S. Miguel de Machede, uma pequena povoação próxima da cidade histórica de Évora, em Portugal. Vimos à procura de pessoas que sofreram na pele calejada pelo sol alentejano, enegrecida com o trabalho agrícola iniciado na mais tenra infância, os cinquenta anos de uma ditadura fascista que os privou de aprender dois dos mais belos prazeres da vida: ler e escrever.

Numa rua estreita mas luminosa, caiada de branco silêncio e azul céu, ouvimos adultos a aprenderem coisas de crianças. Os sons vêm daquela casa para onde estão a entrar quatro mulheres e um homem com idades entre os 70 e 80 anos. Entramos e sentamo-nos com eles. Reavivamos os tempos de aprendizagem do “a,e,i,o,u” e aprendemos com se constrói uma vida e uma cultura ricas, às custas de muitos suores é certo, mas com a certeza do dever cumprido ao longo de uma luta diária pela sobrevivência, sua e dos seus. E tudo sem saberem escrever e ler uma palavra, uma letra, sem um nome escrito pelo próprio punho que as articulações envelhecidas teimam, agora, em materializar mesmo que uma singela letra demore minutos a ganhar forma no papel. A Dona Inês já sabe ler depois de 7 anos de estudo. A Ti Rosa, a mais velha da sala, vê mal por isso não vai mais longe do que escrever o nome. A Dona Florência e a Dona Antónia também mas por razões diferentes, porque lhes basta saber escrever o nome.

Num silêncio por vezes interrompido por risos sussurrados e incontroláveis, típicos de uma sala de aula, falam-nos de como é crescer e viver num mundo feito de palavras, ora com uma voz emocionada, outras vezes com gargalhadas mascaradas das vergonhas porque já passaram, vítimas do analfabetismo.

Como será nunca ter lido um livro, perguntamos-lhes?
E perguntamo-nos: será que é isto que sentem os mais de 80 mil alentejanos analfabetos, os 840 mil portugueses analfabetos ou os 862 milhões de analfabetos adultos espalhados por todo o planeta?

Falam-nos das profissões que gostariam de ter exercido se tivessem umas letras e fora da sala de aula continua a ouvir-se o silêncio introspectivo da planície rasgado, pontualmente, pelo folêgo dos habitantes Joaquim Bravo e Inácio Contenda que trabalham a terra até o cansaço lhes vencer a força dos braços. Mais ao fundo, o senhor Miguel faz cadeiras em miniatura e a Dona Ilda dá de comer às galinhas, num ritual diário que os ajuda a matar o tempo, difícil de completar a volta dos 360º numa região desfavorecida como o Alentejo.

Dão-nos aulas de sobrevivência, sobretudo. De como se sobrevive confiando na sua intuição natural, na sua visão do mundo, na sua forma de distinguir o bem do mal. A experiência e uma cultura oral rica foram os seus manuais escolares ao longo da vida. Poderão, os analfabetos, não estar cientes disso mas está quem os estuda e lida com eles como o pedagogo José Bravo Nico ou o neurocirurgião Alexandre Castro Caldas que investiga e compara o funcionamento distinto dos cérebros de quem aprende a ler e escrever na idade adulta e de quem teve a oportunidade de o fazer na infância.

Voltamos a São Miguel de Machede. Nas horas de menos calor os bancos da Praça pública enchem-se de homens que aqui estão para olhar o movimento dos carros e falar de tudo e de nada. Como é costume dizer-se, é a conversar que as pessoas se entendem. Por alguma razão, a sabedoria popular não pensou a frase “é a escrever que as pessoas se entendem”. Será porque o discurso escrito não tem capacidade de se defender a si próprio, como as figuras pintadas, e porque a escrita é um remédio para a rememoração e não para a memória como defende Platão na obra Fedro?

Não há palavras escritas neste documentário. Apenas vozes e rememorações orais.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007